sábado, 14 de agosto de 2010

Tangencialidade

Liara estava grávida.

O pai da criança, que, no momento, não era necessariamente o cônjuge de Liara, chamava-se Válter. Válter era um homem de meia idade, meia estatura e peso médio dentro dos padrões medianos para pessoas de sua idade e estatura, que trabalhava no ramo da construção civil, mais especificamente no ramo das roldanas, mais especificamente ainda no ramo dos lubrificantes que se usavam nas roldanas usadas na construção civil. Válter tinha a função básica de fiscalizar se a consistência do lubrificante estava adequada para que o mesmo operasse como tal, ou seja, se o lubrificante parecia a agia mesmo como um lubrificante. Por isso, não incomum, chegava em casa quase todo dia com as mãos sujas de graxa, motivo pelo qual Liara, àquela época, aborrecia-se com freqüência. Eram tubos e tubos de detergente toda semana, sem falar nas toalhas brancas que se tornavam encardidas somente para que Válter tivesse suas mãos limpas de novo. Fazia isso porque sabia, logicamente, que a substância anfifílica contida no detergente - metade polar, metade apolar - seria capaz de, ligando-se à graxa - notadamente apolar -, ser carreada das suas mãos pela água - substância mais totalmente cem por cento polar da natureza -, e, com isso, se livrar de uma vez por todas da graxa-de-todo-dia. O que ele não sabia era que, com tanto detergente indo ralo abaixo, a caixa de godura rapidamente tornara-se inapta a exercer adequadamente sua função de caixa de gordura. Dentro em pouco, baratas e mais baratas, advindas da caixa de gordura que, a uma altura dessa, estava completamente cheia de pedras de sabão (importante lembrar aqui que o nome "caixa de gordura" faz referência ao fato de que a gordura que desce pelo ralo, teoricamente, juntando-se com o detergente ou sabão da lavagem, precipitará numa pedra e ficará contida no retináculo destinado a esse fim, ou seja, a caixa de gordura, motivo pelo qual não se deve supor que estas pedras são de gordura, mas sim, de sabão), começavam a sair ralo afora, tomando conta de toda a cozinha, para nojo, desgosto e, principalmente, raiva de Liara. Com o tempo e a reincidência, Liara aprendeu a não só não ter medo das baratas, como a persegui-las e matá-las peremptoriamente. As baratas, dotadas de pêlos (com acento pra não confundir com a preposição) sensoriais no ápice de suas antenas, prevendo o perigo iminente e eminente, tentavam por todas as vias salvar suas já breves vidas, quase sempre com relativo insucesso, uma vez que Liara era uma caçadora voraz e destemida. Por conta disso, o chão da cozinha havia se tornado um mosaico de manchas amarelo-marrom-esverdeadas contra um fundo branco, resultado das constantes mortes por esmagamento às quais esses pitorescos insetos estavam submetidos, levando a crer que o sangue das baratas seria amarelo-marrom-esverdeado. Ledo engano. A linfa que circula no corpo desse insetos - e que tem o mesmo papel que o sangue nos mamíferos - é incolor. O que, na verdade, dá aquela coloração amarelo-marrom-esverdeada à barata pós-esmagamento é a maceração de uma estrutura chamada corpo de gordura, localizada no abdome, que tem a função óbvia de armazenar lipídios de reserva energética, lembrando vagamente a caixa de gordura mencionada anteriormente. Mas foi Liara que acabou depletando sua reserva de energia e paciência com isso tudo. O estresse diário acabou por incorrer em picos hipertensivos, agravando a sua pré-eclâmpsia, morbidade obstétrica que pode por em risco a vitalidade fetal e materna. Com isso, sentindo dores abdmoniais, tendo vômitos incoercíveis e se queixando de escotomas visuais, Liara foi ao consultório médico essa manhã para avaliação de urgência. Ah, é... o médico.

Pois pronto! Liara estava grávida e, ainda deitada na mesa de exame, recebeu a notícia de que seu filho ia nascer. A bolsa havia rompido no auge da trigésima oitava semana de uma gravidez cheia de lubrificantes, detergentes, caixas de gordura e baratas. Muitas baratas.








A tangencialidade é um tipo de distúrbio de associação em que o pensamento e a fala divergem ou se desviam do tópico do momento, de modo que parecem desconexos ou irrelevantes; se fre­qüentemente repetida (e, em especial, se o locutor não volta espontaneamente ao tópico), a tangencialidade é denominada fala difusa, e o seu resultado final é a destruição do valor da fala como meio efetivo de comunicação com os outros.


Post Scriptum 1: O nome desse post deveria ter sido Discovery Channel.

Post Scriptum 2: Por pouco não rolou uma fala difusa aí...


[ "You take the blue pill and the story ends. You wake in your bed and believe whatever you want to believe. You take the red pill and you stay in Wonderland, and I show you how deep the rabbit-hole goes... Remember: all I am offering is the truth, nothing more." ]

Quando a gente acredita, a gente pode fazer chover...