quinta-feira, 5 de março de 2009

Ritual

De volta ao batente.


Os Maori são uma tribo nativa da Nova Zelândia, mundialmente conhecidos como aborígenes após a colonização de seu território por exploradores europeus. Como toda tribo digna, os Maori
possuíam uma diversidade de rituais, sendo o "Moko", talvez, o mais difundido. Moko era o nome dado ao ritual de tatuar a face, coisa que, dentro da tribo, chegava a designar status e posição social. Para um homem Maori, quanto mais tatuada a face, maior o seu grau de nobreza. Guerreiros mortos em batalha tinham suas cabeças decepadas e guardadas em urnas sagradas, tornando-se, mais tarde, objetos de grande cobiça por parte dos colecionadores.

E a lista de rituais não parava por aí. Embora fosse uma tribo firmemente organizada em torno de padrões hierárquicos complexos para a época, os Maori também possuíam hábitos ultrapassados para o seu tempo. Um deles era o ritual da "Kakunia", na qual toda criança que nascesse com algum problema congênito seria abandonada à própria sorte, quase sempre morrendo de inanição ou sendo devorada por algum predador. Era a forma vista por eles de purificar a tribo de qualquer mal que pudesse acometê-los.

Zamuth e Zethen eram irmãos gêmeos, nascidos e criados sobre a doutrina Maori. Zamuth, o primeiro a nascer, veio ao mundo maior e mais pesado que o normal, sinal de extremo vigor na concepção da tribo. Zethen, mais franzino e frágil que Zamuth, já não deixou a mesma impressão. Assim que nasciam, todas as crianças eram levadas para serem inspecionadas pelo Pajé. Zamuth, como era de se esperar, impressionou pelo tamanho e força. Zethen, entretanto, não teve a mesma felicidade. Após a visita ao Pajé, a mãe ficou sabendo que Zethen possuía um defeito mortal no "tanuoh", que, na língua deles, quer dizer coração. Assim, o destino de Zethen estava traçado. Algum familiar deveria levá-lo às pradarias e deixá-lo lá, envolto num pano, conhecido como "theru", e sobre o qual se depositaria um ramo de aroeira.

Entretanto, contrariando o rito sagrado, a mãe resolveu criar ambos os filhos, escondendo do resto da tribo a morbidade de Zethen. A assim foi feito. A muita custa, as crianças cresceram, cada uma na sua individualidade, até completarem vinte e um anos. Zamuth cresceu com todo o vigor que já lhe era peculiar ao nascimento. Tornou-se um homem imponente e altivo. Zethen, sob todos os cuidados da mãe, não apresentava lá a mesma energia do irmão, mas também não tinha um ar tão doente.

Vinte e um anos se passaram sem que Zethen despertasse nenhuma suspeita. Nem mesmo Zamuth era ciente da moléstia do irmão. Foi quando então, um dia, por intermédio da curandeira da tribo, que havia ido à casa dos garotos para tratar uma ferida na perna de Zethen e escutara a mãe falando com a irmã sobre o filho doente, que o Pajé soube que aquele garoto de vinte e um anos atrás ainda estava vivo. Logo houve comoção por toda a tribo. Um ritual de milhares de anos havia sido quebrado e alguém ia pagar por isso. No centro da vila reuniram-se os aldeões de maior patente a fim de decidir o que seria feito. A mãe, tida como a grande transgressora, deveria ser julgada de acordo. Após longa discussão, ficou-se decidido que Zethen deveria ser expulso da vila e sua mãe, sacrificada. Houve nova comoção. Vendo tudo, o próprio Zethen resolveu entrar em cena.

- Eu não entendo. Eu passei vinte e um anos da minha vida vivendo às escuras sem ninguém saber de nada. Não creio que meu problema deva ser motivo de tanta balbúrdia. - disse o jovem.

- Você conhece o ritual, Zethen. Assim como sua mãe. Jamais foi permitido que tamanho absurdo fosse tolerado. Vivemos há milhares de anos em harmonia por causa do modo como sempre fomos. - retrucou o Pajé, inflexível.

- Pois bem. Proponho um acordo. Vou provar a todos que eu sou tão capaz quanto... quanto...

Nesse momento, Zethen parou. Um filme passava pela sua cabeça. Todos aqueles anos vistos num átimo de segundo.

- Vou provar a todos que sou tão capaz quanto meu irmão. - finalizou.

A balbúrdia aumentou. Ouviam-se gritos e sussurros.

- E como você pretende fazer isso? - indagou o Pajé, curioso.

- Vamos nadar mar adentro. Aquele que conseguir nada para mais longe da costa será considerado o mais apto. Se eu conseguir, exijo o direito de permanecer na tribo e quero que minha mãe seja poupada. Do contrário, eu mesmo pularei do precipício.

O silêncio que se seguiu pareceu ter durante uma eternidade. O Pajé sentiu-se tentado a ver o desenrolar daquilo e aceitou o desafio. Sabia qual seria o resultado inevitável. Todos sabiam. Ver Zethen pulando do alto da Grande Montanha eximiria-lhes da culpa. E assim sendo, todos foram para casa, para se preparar para o dia seguinte.

Na manhã que veio, todos estavam à beira do mar. Os irmãos estavam ladeados e não trocavam olhares ou palavras. Antes de autorizar o início do ato, o Pajé foi ter com Zethen.

- Espero que você saiba o que está fazendo. Ninguém irá te salvar se você se afogar. Nem mesmo o seu irmão. - disse o Pajé.

Zethen, contudo, permanecia impávido, concentrado na vista que tinha do oceano. Nunca tinha visto por aquele ângulo. Sua beleza era indescritível. Contemplou o horizonte, o sol nascente e estava a observar uma gaivota solitária quando o Pajé gritou, autorizando a contenda. Os dois irmãos mal correram para a água e já estavam nadando. Ambos davam tudo de si. Zamuth, de início, conseguiu abrir notável vantagem, fazendo o Pajé sorrir sorrateiramente. Zethen, indisposto a desistir, dava tudo que podia. Já tinham vencido a linha de arrebentação da praia e agora nadavam em direção ao alto-mar. O público postado na praia observava os dois irmãos virarem pontinhos no horizonte. Logo tudo estaria acabado. Logo todos voltariam para casa sem nenhuma surpresa.

Após nadarem mais de um quilômetro e meio, Zamuth começava a sentir o cansaço tomar conta do seu corpo. Foi diminuindo o ritmo paulatinamente até parar na água. Olhou para trás, em direção à praia, e já não conseguia divisar a costa. Percebeu logo após que também não havia sinal do seu irmão. Apavorado, começou a gritar pelo seu nome sem obter resposta. O irmão havia se afogado. Lágrimas escorriam pela sua face. Voltou para a praia com o maior pesar do mundo no coração. Saiu da água e se ajoelhou na areia, pedindo desculpas à mãe por não ter salvado o irmão enquanto pôde. Todas as atenções estavam em Zamuth. O Pajé agora possuía um ar de contentamento, exatamente aquele de alguém que aprecia um fato já esperado. Acabara de dar as costas para voltar à vila quando algo aconteceu. Um grito... e alguém vinha saindo de dentro d'água.

Era Zethen com certeza. Não parecia cansado. Tinha no rosto um traço sereno e firme. Ajoelhou-se ao lado do irmão sem que esse pudesse vê-lo. Ao se virar, Zamuth teve uma enorme surpresa e mais lágrimas irromperam face abaixo. Zethen colocou a mão em seu ombro.

- Pensei que você tivesse se afogado. - falava Zamuth atropeladamente. - Olhei para trás e não te vi.

- E porque eu estava à sua frente, irmão. Te ultrapassei sem que você tivesse me visto. - falou Zethen calmamente.

- À minha frente?! Então você conseguiu, irmão! Você foi mais longe.

Zamuth estava animado com o ocorrido. Enfim, o irmão poderia ficar.

- Mas se você estava à minha frente, por que não parou e me avisou para voltarmos?

- Não estava nadando para voltar, irmão.


[ "You take the blue pill and the story ends. You wake in your bed and believe whatever you want to believe. You take the red pill and you stay in Wonderland, and I show you how deep the rabbit-hole goes... Remember: all I am offering is the truth, nothing more." ]

Quando a gente acredita, a gente pode fazer chover...