quinta-feira, 26 de abril de 2012

Tempo

Não consigo mais levantar depois das oito. Não consigo mais andar vagarosa e despretensiosamente até a cozinha, pegar um fruta na geladeira e comer enquanto vejo o noticiário da manhã. Não há muito tempo, na verdade. Recebo notícias constantemente durante o dia e não dá sequer para fazer um juízo crítico a respeito. Não sou indiferente - o problema é que não há tempo hábil para que se fique feliz ou triste com o que acontece, seja coisa boa ou ruim. Você olhando de fora vai dizer logo que eu endureci, que fiquei sisudo, tenaz. Não se engane.

Tempo faz também que não sento à beira da janela e disponho-me a pensar no nada, praticando o outrora rotineiro ócio produtivo. Ócio? Não, não há tempo. Ócio é algo para quem tem um dia com mais de quarenta e oito horas, para quem escreve o nome sem abreviaturas e para quem lê revista no banheiro. Ócio é para quem tem tempo e dinheiro. Eu, infelizmente, não tenho nenhum dos dois.

Mas começo a suspeitar que isso tudo começou quando eu comprei o primeiro creme de barbear, tirei a carteira de motorista e passei a lavar minhas próprias cuecas. Mamãe disse uma vez que era porque eu estava "ficando grande", mas eu acho que é porque não estou mais tendo tempo.


terça-feira, 3 de abril de 2012

Divã

- De zero a dez, como está o ânimo hoje, Emília?

- Dois.


E assim vinha sendo a vida de Emília nos últimos onze meses: desânimo, cansaço, insônia, falta de prazer e vontade, tristeza e um tremendo pessimismo. Em casa, andava trocando o dia pela noite. No trabalho, já não rendia mais como antes - fato preocupante dada a extrema seriedade com a qual o trabalho era costumeiramente encarado. Não conseguia mais sequer se concentrar em algo por poucos minutos. Calculava um troco, por exemplo, na mesma velocidade de um pré-escolar. Pensava muito para dar respostas simples, perdia o ponto de ônibus, comia pouco e mal, mutismo, abulia, bradipsiquismo, choro facil e imotivado, chão.

No começo, escondia tudo o que podia por medo de "contaminar" os outros (mentira: escondia por medo de parecer fraca, humana). Forçava as risadas e a autoestima, mas tudo acabava parecendo mais artificial ainda. Foi aí que um dia sua chefe disse que tirasse férias. Estava trabalhando demais (mentira: trabalhava na mesma intensidade dos últimos sete anos). Disse que não precisava, que não havia nada de errado, que estava tudo bem. "Estava tudo bem". Nem preciso dizer que é mentira porque, além de ser uma mentira descarada, é também a mentira mais comum dita por qualquer pessoa. Ainda assim, a chefe insistiu. E sabe como é chefe, né?! A gente acaba fazendo mesmo a contragosto.

Procurou um médico sem saber ao certo de que se queixar. Era tudo tão ruim que se queixar de algua coisa especificamente era muito difícil. De todo modo, uma vez deitada no divã do psiquiatra, foi falando o que lhe aflingia no tom choroso crescente. O médico escutava tudo com muito interesse e, de certo modo, compaixão. Ao final da sessão, foram dadas algumas orientações e prescritos alguns comprimidos, sendo solicitado o retorno em pouco tempo.

Como nada melhorara, Emília acabou voltando antes do combinado. Surpreso, o médico começou a conversa perguntando sobre seu ânimo, mas a resposta você já sabe. Constatou, então, que nada havia melhorado. Mais alguns minutos de conversa e um clique estalou na sua cabeça:

- Não é depressão, Emília.

- Não...?

- Não. Pelo menos até que você tenha certeza que não está rodeada por idiotas.


[ "You take the blue pill and the story ends. You wake in your bed and believe whatever you want to believe. You take the red pill and you stay in Wonderland, and I show you how deep the rabbit-hole goes... Remember: all I am offering is the truth, nothing more." ]

Quando a gente acredita, a gente pode fazer chover...