domingo, 9 de agosto de 2009

Mais um dia

Acordou achando-se o dono do mundo. Tá bom, vá... Do mundo também não. Mas do bairro talvez. O importante era que estava muito, mas muito confiante. Mais do que nos dias que passaram. Hoje tava com aquela cara que ia ser "o" dia.

Levantou tropegamente da sua almofada. Não que tenha sido uma noite mal dormida, não, mas a expectativa deixara-o agitado. Foi até a cozinha abastecer-se da sua dose matinal e diária de leite. Para um como ele, levava uma vida com regalias além do comum, realmente de fazer inveja. Saiu pela janela por julgar ser mais rápido e menos previsível. Saltou do portal da janela para a grama macia, verde e reluzente, que formava um belo atapetado no jardim e lembrava fortemente um roupão de veludo. Sentindo a maciez no solo onde pisava, ronronou preguiçosa e manhosamente. Era uma bela manhã de sol e ele ainda estava apenas estirando as pernas. Notou o movimento na calçada: pessoas passavam naquilo que, provavelmente, era o início do dia delas. Cada uma com o seu objetivo, com algo na mente que precisava se feito ou alcançado.

E, por isso, com ele não era diferente. Sem mais, lembrou-se do porquê aquela manhã deixara-o tão firme de si. Virou-se para a casa e, vendo a parede que dividia a cozinha do jardim, divisou a janela e, ao seu lado, a calha. Aquela era uma calha bastante velha e desgastada, parte pelo tempo e parte por ele mesmo, que gostava de brincar de subir por ali para ter acesso ao telhado. Era perceptível, inclusive, as marcas das unhas no comprimento calha-acima. Caminhou descompromissadamente em direção a ela como nunca caminhara todos esses anos. No começo, subir aquela calha era bastante difícil; exigia força e preparo além da sua capacidade. Hoje, no entanto, era possível conseguir fazê-lo, como diriam, com uma mão nas costas. E assim o fez. Subiu antes que o relógio da sala, datado de 1879, herança da família, conseguisse estalar um tic-tac completo.

Aí o telhado era outro mundo. O alto do mundo, como costumava pensar. Nem mesmo as belas árvores do jardim - uma mangueira, uma macieira e dois coqueiros-anão -, ligeiramente mais elevadas, ofereciam visão tão magnífica. Mas não queria perder tempo procurando o horizonte hoje. Não hoje. Tinha uma objetivo a cumprir. Fez-se, então, o mais silencioso que pôde. Movia-se tão sorrateiramente que lembrava um tigre-de-bengala se esgueirando pela mata alta antes do clímax do ataque. Nem tinha chegado ao topo da cobertura e já sabia que estava no caminho certo: um barulho denunciava. Algo como um piado ou um canto monofônico, alternado por momentos de relativo silêncio. Foi o mais cautelosamente possível em direção à verga do telhado, alcançando-a sem emitir qualquer sinal que o delatasse. So far, so good. Ainda agachado, foi brexando vagarosamente o outro lado do telhado que se angulava descendentemente. Foi então que viu. Estava ali, parado, no mesmo lugar de sempre, com o mesmo ar despreocupado de sempre. Perigo nenhum existia.

Agora sua visão binocular de caçador estava fixa no alvo que não exibia qualquer abalo. Por um instante tudo parou. E ele pensou. Pensou, pensou, pensou. Pensou se hoje ia ser realmente diferente ou apenas seria uma enfadonha repetição dos dias anteriores.





[ "You take the blue pill and the story ends. You wake in your bed and believe whatever you want to believe. You take the red pill and you stay in Wonderland, and I show you how deep the rabbit-hole goes... Remember: all I am offering is the truth, nothing more." ]

Quando a gente acredita, a gente pode fazer chover...