segunda-feira, 13 de julho de 2009

Fora do ninho

Não sei se numa noite chuvosa ou numa tarde de verão. Talvez em nenhum dos dois. Mas foi num momento assim, momento de bobeira, que painho e mainha aproveitaram para fazer valer o bíblico "crescei e multiplicai-vos". Daí nove meses depois, tempo suficiente para que uma única célula gere outras trilhões, nós, meros mortais, somos então forçados a entrar de vez no mundo da luminosidade, do frio e da respiração pulmonar. De todas, essa seja talvez a mudança mais drástica pela qual passamos. É uma mudança de habitat, inclusive. A única. É como se fôssemos peixinhos boiando num saco d'água e alguém deixasse o saco cair no chão. E, até onde eu lembre, essa é a primeira vez que pulamos pra fora do ninho.

O tempo passa mais um pouquinho e, atendendo a uma demanda mundialmente aceita, temos que ser educados. Temos que viver de acordo com certas normas impostas por alguém que veio antes de nós. Temos que saber matemática, história nossa e dos outros, ciências e um catatal de coisas que, segundo papai e mamãe, vai nos fazer "alguém" na vida. E aí nos jogam em um local chamado escola para que lá possamos, no espaço de alguns anos, aprender tudo que a humanidade levou toda a sua existência para construir. É aí que pulamos do ninho de novo. Pulamos, sim, porque no ninho é bom que sempre tem comida quentinha, um local aconchegante para dormir e o conforto da asa de mainha pra nos acalentar. E na escola num tem nada disso. Ninguém - ou quase ninguém - tentar comer nosso fígado quando estamos no ninho. Mas aí você, por vezes, ter que sair do ninho. Se não, empurram-te. E se você não souber como sair do ninho, vai se esborracharembaixo. Ou, caso não se espatife por completo, ainda corre o risco de ser devorado pelos seres que vivem fora do ninho.

E é por isso que nós, seres humanos, temos sorte. E temos que agradecer por ela todos os dias. Algumas espécies de águia fazem ninhos tão alto nas montanhas que se os filhotes não aprenderem a voar no espaço de uma primavera com certeza se esborracharão bonito lá embaixo. Pior ainda são as garças: seus ninhos são contruídos em galhos que passam por sobre o leito de rios infestados de crocodilos famintos. Se o filhote pular do ninho e não souber fazê-lo, e se ele não morrer da queda ou afogado, talvez seja devorado por um crocodilozinho de seis ou sete metros. Isso, sim, é crueldade, não?! Malditas garças.

Mas voltando lá pra escola, vemos que o mundo é cheio de quedas altas e crocodilos famintos. Chegamos no colégio sem conhecer ninguém e morremos de chorar quando mamãe e sua asa acalentadora vão embora. É... estamos realmente fora do danado do ninho. Mas aí vamos crescendo. Chegamos a conhecer várias pessoas alí na mesma situação que nós e começa uma ajuda mútua. Porque elas estão fora dos ninhos delas e nós, do nosso. Aí esses a gente chama logo de amigo. E o tempo vai passando. Concluímos "escola" e passamos para o próximo nível: "faculdade". Essa é outra pulada do ninho que merece destaque. Começamos a ver que aquele negócio de ir pra escola pra ser alguém na vida tinha algum fundamento, muito embora já no primeiro dia de faculdade nos mandem esquecer tudo que a gente aprendeu no colégio. E mais quatro ou cinco anos se passam para a gente concluir o estágio "faculdade". Aqui num precisa nem se preocupar em pular; caso você não o faça, eles te empurram pra fora do ninho sem piedade, tal qual as garças.

E depois da faculdade vem um outro estágio, bem mais duradouro e interessante, chamado "o resto da sua vida". Aqui vão querer comer seu fígado, pisar em você, fazer você de presa, ludibriá-lo, enganá-lo, imbecilizá-lo, aliená-lo, emburrecê-lo e por aí afora vai. Você, por vezes, também vai querer comer um fígado e empurrar alguém pra fora do ninho. E você vai começar a ver que, mais cedo ou mais tarde, você vai ter que ter um ninho só seu. Não será mais necessário se arriscar tanto porque agora você aprendeu a voar, teve tempo suficiente. E vai ver que, de repente, aquele amigo lá de trás compartilha o ninho com você e que, quem sabe numa noite chuvosa, talvez numa tarde de verão, num momento de bobeira, vocês resolvem reviver toda essa história de ninho como espectadores e não mais como atores. E que um dia, quem sabe, você, mesmo depois de tanta coisa, vai precisar pular fora do ninho de novo, mesmo com toda aquela altura e todos aqueles crocodilos te esperando lá embaixo...


[ "You take the blue pill and the story ends. You wake in your bed and believe whatever you want to believe. You take the red pill and you stay in Wonderland, and I show you how deep the rabbit-hole goes... Remember: all I am offering is the truth, nothing more." ]

Quando a gente acredita, a gente pode fazer chover...