Pela janela...
A rua. Iluminada debilmente pelas luzes amareladas dos postes, é como se alguém houvesse esticado um longo tapete que imita o tom malhado de uma onça: espaço negro entremeado por bolas de luz amarela. Padrão típico e estranho ao mesmo tempo. Deserto. Não se vê qualquer forma de vida além dos gatos e, esporadicamente, bem esporadicamente mesmo, um rato ou outro. As calçadas mal-cuidadas são forradas com recortes de revistas e jornais-de-ontem. Tem aquela aparência de velho-oeste, sabe?! Quando o vento sopra um pouco mais forte até dá pra escutar o barulho dos sacos de lixo - aqueles que guardamos do supermercado - que esperam pela visita do serviçal de laranja no dia vindouro. E tem as árvores, que respondem por aproximadamente 97% da beleza da vista dessa janela a essa hora da noite. Uma, em especial, tem uma copa frondosa que, não fosse pela noite, talvez valesse a pena perder uma tarde só olhando. Ah, esqueci: é madrugada. O relógio aqui marca exatamente uma e quarenta e dois. Agora, quarenta e três. Mas voltando às árvores, preciso dizer que há muitas. "Há" no singular, claro, porque "haver" no sentido de existir é impessoal. Tão impessoal como o rapaz que acaba de entrar no meu campo de visão, descendo a ladeira e, ao que me parece, assobiando para a vida. Cena típica, não? Quem nunca desceu uma ladeira às duas da manhã assobiando? Mas por que ele assobia? Ele está feliz? Talvez triste... É difícil dizer daqui. Apesar de ser segundo andar, essa janela sempre me pareceu mais alta. Meus pais, inclusive, colocaram grades para que eu não saísse voando. Ledo esforço. As grades nunca me impediram de voar... Teve até esse dia que eu sonhei que saía voando pela minha janela e passava por cima de todos os quintais do bairro. Lá embaixo, os garotos paravam de jogar bola para acenar pra mim enquanto planava agradavelmente. Já alcei muitos voos por aí. Nossa! Que divagação... Estávamos falando de que mesmo? Ah, das árvores. É, são muitas. E todas olham para o céu, que, nesse mesmíssimo momento, exibe um tremendo cabedal de estrelas, circunscritas à uma lua daquelas de filme de lobisomem, meia escondida por detrás das nuvens. Meu avô costumava brincar comigo dizendo que a lua escondia um segredo que a gente só descobria olhando. Infelizmente ele se mudou pro andar de cima, o da lua, antes de me dizer que segredo era. Desde então, sempre que ela está lá eu olho, olho, na tentativa de achar alguma coisa pouco usual. Deve ser daí que vem meu fascínio. "Mas onde está a lua, vovô?", eu perguntava a ele. "Não está lá? Ora... Pois vou colocá-la lá agora mesmo!", dizia ele, tentando me convencer de que era ele que a colocava onde bem queria. E de certo modo ele tinha razão. Mas aguçando a visão mais um pouco, consigo, inclusive, ver o mar. Se olhar bem concentrado, posso até imaginar o som que ouviria se estivesse um pouco mais perto, posso tocar nesse som. Tocar esse som seria a materialização de uma bela sinestesia. É aquele som que a gente escuta quando coloca o ouvido perto de uma concha. Mas se você colocar perto da boca de uma garrafa de cerveja vazia também vai escutá-lo do mesmo jeito... sabia? Eu já sabia disso antes mesmo de aprender como se seca uma garrafa de cerveja, aos meus dezesseis anos. É... nesse sentido eu fui meio cafona mesmo. Todo mundo já bebia e namorava enquanto eu tinha outras preocupações em mente. Mas também pudera: algumas das coisas que eu "antecipei" na vida não saíram tão boas quanto poderiam ter sido se eu tivesse esperado um pouco mais. Por isso, hoje, vivo sem pressa.
[pausa bastante prolongada]
Ah! Não tinha reparado ainda, mas o rapaz que descia a ladeira já se foi. Agora estou novamente em um momento solitário e, de certo modo, monótono, moroso. Tudo está na sua estática de sempre, como cabe a quase toda madrugada. Até poderia olhar pra dentro da janela agora, mas aí eu me depararia com meu próprio mundo, aquele no qual vivo o dia-a-dia. Esse mundo não me interessa agora. Lá fora é mais interessante. Na verdade, quase sempre é mais interessante lá fora, fora do ninho. É tudo muito mutante. Os jornais-de-ontem, por exemplo, nunca param no mesmo lugar, embora todos estejam ao bel-sabor do vento. É como uma folha seca que cai da árvore. Bem filosófico, né?! Até onde chegaríamos discutindo sobre essa folha? Com certeza a lugar nenhum, pois o que vale não é o destino da folha, mas a discussão em torno desse destino. Tá muito vago? Também acho. O problema é que, a medida que a gente fala - ou escreve -, a inspiração vai requerendo quantidades cada vez maiores de nossa energia para continuar no mesmo nível. É como se o ato de falar - ou escrever - em si fosse nos sugando aos poucos, gota por gota. Daí vamos ficando cansados e começamos a fazer conexões pouco ou nada óbvias. É como dirigir com sono, sei lá. Não é a toa que os poetas são pessoas exaustas por vezes. Alguns poemas são verdadeiros partos, como eu já assim escutei da boca de um poeta de carne e osso. E, conhecendo partos como eu conheço, devem ser do caralho. Ah, não, não! Palavrões não são proibidos, sequer recriminados. Quando usados com sapiência e parcimônia, tem efeito igual a uma crase bem aplicada. Já perceberam como é chique uma crase bem aplicada? "Volto à Bahia". Ó! Massa. É de encher os olhos.
[pausa proposital, menos prolongada]
Mas texto longo também fica chato se a inspiração não estiver em alta. E a janela continuará aqui noite após noite, até que eu alce um vôo ou muito longo ou muito distante a ponto de não voltar mais. Aí eu terei outra janela. Vocês deveriam experimentar a de vocês. Genial. Ops! Aí vem outro rapaz...
A livre associação foi um método utilizado por Freud, em substituição à hipnose, que consistia em deitar o paciente no divã e encorajá-lo a dizer o que viesse à sua mente, sendo também este convidado a relatar seus sonhos. Freud analisava todo o material que aparecesse, e buscava entendê-los e encontrar os desejos, temores, conflitos, pensamentos e lembranças que pudessem se encontrar, que estivessem além do conhecimento consciente do paciente.
Post Scriptum: Queria beijar uma tartaruga agora...
A rua. Iluminada debilmente pelas luzes amareladas dos postes, é como se alguém houvesse esticado um longo tapete que imita o tom malhado de uma onça: espaço negro entremeado por bolas de luz amarela. Padrão típico e estranho ao mesmo tempo. Deserto. Não se vê qualquer forma de vida além dos gatos e, esporadicamente, bem esporadicamente mesmo, um rato ou outro. As calçadas mal-cuidadas são forradas com recortes de revistas e jornais-de-ontem. Tem aquela aparência de velho-oeste, sabe?! Quando o vento sopra um pouco mais forte até dá pra escutar o barulho dos sacos de lixo - aqueles que guardamos do supermercado - que esperam pela visita do serviçal de laranja no dia vindouro. E tem as árvores, que respondem por aproximadamente 97% da beleza da vista dessa janela a essa hora da noite. Uma, em especial, tem uma copa frondosa que, não fosse pela noite, talvez valesse a pena perder uma tarde só olhando. Ah, esqueci: é madrugada. O relógio aqui marca exatamente uma e quarenta e dois. Agora, quarenta e três. Mas voltando às árvores, preciso dizer que há muitas. "Há" no singular, claro, porque "haver" no sentido de existir é impessoal. Tão impessoal como o rapaz que acaba de entrar no meu campo de visão, descendo a ladeira e, ao que me parece, assobiando para a vida. Cena típica, não? Quem nunca desceu uma ladeira às duas da manhã assobiando? Mas por que ele assobia? Ele está feliz? Talvez triste... É difícil dizer daqui. Apesar de ser segundo andar, essa janela sempre me pareceu mais alta. Meus pais, inclusive, colocaram grades para que eu não saísse voando. Ledo esforço. As grades nunca me impediram de voar... Teve até esse dia que eu sonhei que saía voando pela minha janela e passava por cima de todos os quintais do bairro. Lá embaixo, os garotos paravam de jogar bola para acenar pra mim enquanto planava agradavelmente. Já alcei muitos voos por aí. Nossa! Que divagação... Estávamos falando de que mesmo? Ah, das árvores. É, são muitas. E todas olham para o céu, que, nesse mesmíssimo momento, exibe um tremendo cabedal de estrelas, circunscritas à uma lua daquelas de filme de lobisomem, meia escondida por detrás das nuvens. Meu avô costumava brincar comigo dizendo que a lua escondia um segredo que a gente só descobria olhando. Infelizmente ele se mudou pro andar de cima, o da lua, antes de me dizer que segredo era. Desde então, sempre que ela está lá eu olho, olho, na tentativa de achar alguma coisa pouco usual. Deve ser daí que vem meu fascínio. "Mas onde está a lua, vovô?", eu perguntava a ele. "Não está lá? Ora... Pois vou colocá-la lá agora mesmo!", dizia ele, tentando me convencer de que era ele que a colocava onde bem queria. E de certo modo ele tinha razão. Mas aguçando a visão mais um pouco, consigo, inclusive, ver o mar. Se olhar bem concentrado, posso até imaginar o som que ouviria se estivesse um pouco mais perto, posso tocar nesse som. Tocar esse som seria a materialização de uma bela sinestesia. É aquele som que a gente escuta quando coloca o ouvido perto de uma concha. Mas se você colocar perto da boca de uma garrafa de cerveja vazia também vai escutá-lo do mesmo jeito... sabia? Eu já sabia disso antes mesmo de aprender como se seca uma garrafa de cerveja, aos meus dezesseis anos. É... nesse sentido eu fui meio cafona mesmo. Todo mundo já bebia e namorava enquanto eu tinha outras preocupações em mente. Mas também pudera: algumas das coisas que eu "antecipei" na vida não saíram tão boas quanto poderiam ter sido se eu tivesse esperado um pouco mais. Por isso, hoje, vivo sem pressa.
[pausa bastante prolongada]
Ah! Não tinha reparado ainda, mas o rapaz que descia a ladeira já se foi. Agora estou novamente em um momento solitário e, de certo modo, monótono, moroso. Tudo está na sua estática de sempre, como cabe a quase toda madrugada. Até poderia olhar pra dentro da janela agora, mas aí eu me depararia com meu próprio mundo, aquele no qual vivo o dia-a-dia. Esse mundo não me interessa agora. Lá fora é mais interessante. Na verdade, quase sempre é mais interessante lá fora, fora do ninho. É tudo muito mutante. Os jornais-de-ontem, por exemplo, nunca param no mesmo lugar, embora todos estejam ao bel-sabor do vento. É como uma folha seca que cai da árvore. Bem filosófico, né?! Até onde chegaríamos discutindo sobre essa folha? Com certeza a lugar nenhum, pois o que vale não é o destino da folha, mas a discussão em torno desse destino. Tá muito vago? Também acho. O problema é que, a medida que a gente fala - ou escreve -, a inspiração vai requerendo quantidades cada vez maiores de nossa energia para continuar no mesmo nível. É como se o ato de falar - ou escrever - em si fosse nos sugando aos poucos, gota por gota. Daí vamos ficando cansados e começamos a fazer conexões pouco ou nada óbvias. É como dirigir com sono, sei lá. Não é a toa que os poetas são pessoas exaustas por vezes. Alguns poemas são verdadeiros partos, como eu já assim escutei da boca de um poeta de carne e osso. E, conhecendo partos como eu conheço, devem ser do caralho. Ah, não, não! Palavrões não são proibidos, sequer recriminados. Quando usados com sapiência e parcimônia, tem efeito igual a uma crase bem aplicada. Já perceberam como é chique uma crase bem aplicada? "Volto à Bahia". Ó! Massa. É de encher os olhos.
[pausa proposital, menos prolongada]
Mas texto longo também fica chato se a inspiração não estiver em alta. E a janela continuará aqui noite após noite, até que eu alce um vôo ou muito longo ou muito distante a ponto de não voltar mais. Aí eu terei outra janela. Vocês deveriam experimentar a de vocês. Genial. Ops! Aí vem outro rapaz...
A livre associação foi um método utilizado por Freud, em substituição à hipnose, que consistia em deitar o paciente no divã e encorajá-lo a dizer o que viesse à sua mente, sendo também este convidado a relatar seus sonhos. Freud analisava todo o material que aparecesse, e buscava entendê-los e encontrar os desejos, temores, conflitos, pensamentos e lembranças que pudessem se encontrar, que estivessem além do conhecimento consciente do paciente.
Post Scriptum: Queria beijar uma tartaruga agora...