Parte 2 de milhões.
Há de se convir que o ser humano é, evolutivamente, um ser altamente despreparado para viver nesse mundo selvagem. Aliás, nem tanto. Assim o seria não fosse o seu grande triunfo evolutivo: o intelecto. Deveras privilegiado, eu diria. E olhe que ainda assim continua sendo um ser despreparado - mas nem tanto. É só parar pra pensar se tivéssemos que realmente viver na selva. Não temos garras ou chifres, o que com certeza nos torna péssimos em qualquer disputa por comida ou território. Não temos lá uma pelagem digna de um verdadeiro mamífero, como o urso, o que não é muito bacana se o inverno dura mais de meia hora. Não temos nadadeiras, não conseguimos nos locomover satisfatoriamente sobre dois membros (avalie sobre quatro), nossa visão não é adaptada ao escuro, nosso olfato é escravo da gripe, nossos dentes são meras protrusões ósseas, nada de guelras, nada de asas, de veneno, nada. Nada! Seres humanos, a exceção do belo exemplar de cérebro, não têm nada. Agora imagine o que nos resta a fazer na seguinte situação: sozinhos, na selva, no escuro, cercados por um bando de leões famintos, no frio, sem roupas, sem dinheiro, sem coragem, sem nada. O que resta a fazer? Se você pensou "rezar", chegou exatamente onde eu queria. Porque, nesse caso, talvez só Ele salve mesmo. E olhe lá. Tem que ver também o quão famintos estão os leões...
A questão é exatamente essa: o que a evolução nos negou, Ele, por meios obscuros, provê-nos. Pelo menos assim prega a religião. E quando eu digo "Ele" não me refiro a ninguém especificamente. Ele, na verdade, é aquela força incomum, dita superior, na qual os seres humanos põem suas crenças e esperanças afim de compensar sua completa inaptidão em se virarem sozinhos. Deus, Buda, Alá, Zé Ramalho... Dependendo da seita, cabe um nome diferente, mas sempre com o mesmo propósito e para a mesma, digamos, "pessoa". E como Ele quase nunca dá as caras por aqui no mundo dos mortais, resta-nos crer sem vê-lo, apenas ouvindo diversas anedotas ao seu respeito sobre suas mungangas, gambiarras e as baladas badaladíssimas que Ele costumava freqüentar no passado. Tem munganga maior que transformar água em vinho? Por que num podia ser em vários barris de chopp gelado?!
E aí que entra o significado de uma religião. Teoricamente, ela defende uma doutrina pregada por algum rapaz que quer que você, ser humano incompetente, se dê bem. Ou pelo menos não se dê tão mal. E ela age exatamente no ponto que a evolução falhou (eu não diria "falhou"; acho que esse foi um lance muito inteligente da parte dela, o de sermos uma cagada evolutiva), provendo de modo sigiloso e esfumaçado toda a proteção e consolo que a falta de garras e pêlos não nos permite ter. Por isso, exatamente por isso, que quando o negócio tá apertado até o talo as pessoas vão para o templo - tipo igreja, terreiro, essas coisas - e rezam, e dão dinheiro aos pobres, e pagam o dízimo, e se confessam com o sacristão - tipo padre, médium, essas coisas assim -, e fazem promessas, e pedem perdão, e rezam de novo. Na verdade, elas todas estão dando o migué nEle. Migué descarado e sem escrúpulos e Ele, no auge da sua benevolência e ingenuidade, passa a mão na cabecinha de todo mundo. Pronto! Esmola dada é proteção garantida. Anti-pecados e anti-promessas-não-cumpridas. Isso chama-se religião.
E, claro, que esse serviço não sai assim, de graça. Há os secretários que trabalham nos postos de arrecadação fiscal. Coisa simples, rápida e quase nada burocrática. Isso às custas de um bom nível de proteção contra todos os males, inclusive os males do bolso (ou você já viu padre morrendo de fome e andando de ônibus?). E tem também a possibilidade dEle deixar sempre as portas da sua casa aberta, das seis da manhã até às oito, talvez nove da noite. Mas sempre abertas. Isso quando Ele tem casa, né? Porque, às vezes, Ele opta por ser bem humilde e qualquer quartinho de fundo de quintal serve. Há também os adeptos - assim chamados os seres humanos incompetentes - que gostam da ostentação e do quase "divino" em termos de grandiosidade, e, para isso, o secretariado faz questão de erguer chão acima verdadeiros cataclismos arquitetônicos. Mas vale lembrar: Ele diz que gosta do humilde. E eu acredito. Mas seria mais bacana se ele tivesse nos dado garras.
Mas antes que alguém me apredeje, eu queria deixar claro que o fato dEle estar sempre por qualquer lugar é algo da minha apetência. Dizem que ele cuida da chuva, das nuvens, dos passarinhos, das paisagens bonitas, do pôr-do-sol e de toda essa canalhice romântica que fazem as doidinhas chorarem. Eu, como afamado romântico assumido, gosto disso. E, se isso é coisa dEle, então eu gosto dele, correto? Raciocínio lógico. Mas que fique claro que é só dEle. E eu continuo a achar que nossa relação seria bem mais amigável se ele tivesse me feito nascer com garras, pelagem anti-frio, visão noturna ultra High-Tech e um rabinho pra dar o charme. Fêmeas gostam de rabinhos, ouvi dizer. E por favor: não venha me dizer que o seu "Ele" é melhor que o meu. Isso é igual a... a... a... bem, cada um tem o seu e não se discute. Aceita-se apenas. E dentro de certos limites condizentes com o intelecto que lhe foi dado. Por isso, nada de correr maratona de joelho e jejuar por um semestre. Controle-se!
E não entre em pânico. Quando você estiver sozinho na selva, rodeado de leões famintos, no escuro e sem qualquer expectativa de se safar, use o intelecto. A evolução achou que ele seria mais útil que um par de garras. Vai que ela tava certa mesmo, pra variar. Só não demore tanto. Ouvi dizer que leões são horríveis no quesito paciência.
Post Scriptum 1: Esse post faz parte de um desafio. E eu curto desafios...
Post Scriptum 2: Esse texto não reflete necessariamente, em toda a sua extensão e magnitude, a opinião certeira do seu autor. Eu diria, sem nenhum sarcasmo, que ele tem traços de opinião, daqueles bem sutis.
Há de se convir que o ser humano é, evolutivamente, um ser altamente despreparado para viver nesse mundo selvagem. Aliás, nem tanto. Assim o seria não fosse o seu grande triunfo evolutivo: o intelecto. Deveras privilegiado, eu diria. E olhe que ainda assim continua sendo um ser despreparado - mas nem tanto. É só parar pra pensar se tivéssemos que realmente viver na selva. Não temos garras ou chifres, o que com certeza nos torna péssimos em qualquer disputa por comida ou território. Não temos lá uma pelagem digna de um verdadeiro mamífero, como o urso, o que não é muito bacana se o inverno dura mais de meia hora. Não temos nadadeiras, não conseguimos nos locomover satisfatoriamente sobre dois membros (avalie sobre quatro), nossa visão não é adaptada ao escuro, nosso olfato é escravo da gripe, nossos dentes são meras protrusões ósseas, nada de guelras, nada de asas, de veneno, nada. Nada! Seres humanos, a exceção do belo exemplar de cérebro, não têm nada. Agora imagine o que nos resta a fazer na seguinte situação: sozinhos, na selva, no escuro, cercados por um bando de leões famintos, no frio, sem roupas, sem dinheiro, sem coragem, sem nada. O que resta a fazer? Se você pensou "rezar", chegou exatamente onde eu queria. Porque, nesse caso, talvez só Ele salve mesmo. E olhe lá. Tem que ver também o quão famintos estão os leões...
A questão é exatamente essa: o que a evolução nos negou, Ele, por meios obscuros, provê-nos. Pelo menos assim prega a religião. E quando eu digo "Ele" não me refiro a ninguém especificamente. Ele, na verdade, é aquela força incomum, dita superior, na qual os seres humanos põem suas crenças e esperanças afim de compensar sua completa inaptidão em se virarem sozinhos. Deus, Buda, Alá, Zé Ramalho... Dependendo da seita, cabe um nome diferente, mas sempre com o mesmo propósito e para a mesma, digamos, "pessoa". E como Ele quase nunca dá as caras por aqui no mundo dos mortais, resta-nos crer sem vê-lo, apenas ouvindo diversas anedotas ao seu respeito sobre suas mungangas, gambiarras e as baladas badaladíssimas que Ele costumava freqüentar no passado. Tem munganga maior que transformar água em vinho? Por que num podia ser em vários barris de chopp gelado?!
E aí que entra o significado de uma religião. Teoricamente, ela defende uma doutrina pregada por algum rapaz que quer que você, ser humano incompetente, se dê bem. Ou pelo menos não se dê tão mal. E ela age exatamente no ponto que a evolução falhou (eu não diria "falhou"; acho que esse foi um lance muito inteligente da parte dela, o de sermos uma cagada evolutiva), provendo de modo sigiloso e esfumaçado toda a proteção e consolo que a falta de garras e pêlos não nos permite ter. Por isso, exatamente por isso, que quando o negócio tá apertado até o talo as pessoas vão para o templo - tipo igreja, terreiro, essas coisas - e rezam, e dão dinheiro aos pobres, e pagam o dízimo, e se confessam com o sacristão - tipo padre, médium, essas coisas assim -, e fazem promessas, e pedem perdão, e rezam de novo. Na verdade, elas todas estão dando o migué nEle. Migué descarado e sem escrúpulos e Ele, no auge da sua benevolência e ingenuidade, passa a mão na cabecinha de todo mundo. Pronto! Esmola dada é proteção garantida. Anti-pecados e anti-promessas-não-cumpridas. Isso chama-se religião.
E, claro, que esse serviço não sai assim, de graça. Há os secretários que trabalham nos postos de arrecadação fiscal. Coisa simples, rápida e quase nada burocrática. Isso às custas de um bom nível de proteção contra todos os males, inclusive os males do bolso (ou você já viu padre morrendo de fome e andando de ônibus?). E tem também a possibilidade dEle deixar sempre as portas da sua casa aberta, das seis da manhã até às oito, talvez nove da noite. Mas sempre abertas. Isso quando Ele tem casa, né? Porque, às vezes, Ele opta por ser bem humilde e qualquer quartinho de fundo de quintal serve. Há também os adeptos - assim chamados os seres humanos incompetentes - que gostam da ostentação e do quase "divino" em termos de grandiosidade, e, para isso, o secretariado faz questão de erguer chão acima verdadeiros cataclismos arquitetônicos. Mas vale lembrar: Ele diz que gosta do humilde. E eu acredito. Mas seria mais bacana se ele tivesse nos dado garras.
Mas antes que alguém me apredeje, eu queria deixar claro que o fato dEle estar sempre por qualquer lugar é algo da minha apetência. Dizem que ele cuida da chuva, das nuvens, dos passarinhos, das paisagens bonitas, do pôr-do-sol e de toda essa canalhice romântica que fazem as doidinhas chorarem. Eu, como afamado romântico assumido, gosto disso. E, se isso é coisa dEle, então eu gosto dele, correto? Raciocínio lógico. Mas que fique claro que é só dEle. E eu continuo a achar que nossa relação seria bem mais amigável se ele tivesse me feito nascer com garras, pelagem anti-frio, visão noturna ultra High-Tech e um rabinho pra dar o charme. Fêmeas gostam de rabinhos, ouvi dizer. E por favor: não venha me dizer que o seu "Ele" é melhor que o meu. Isso é igual a... a... a... bem, cada um tem o seu e não se discute. Aceita-se apenas. E dentro de certos limites condizentes com o intelecto que lhe foi dado. Por isso, nada de correr maratona de joelho e jejuar por um semestre. Controle-se!
E não entre em pânico. Quando você estiver sozinho na selva, rodeado de leões famintos, no escuro e sem qualquer expectativa de se safar, use o intelecto. A evolução achou que ele seria mais útil que um par de garras. Vai que ela tava certa mesmo, pra variar. Só não demore tanto. Ouvi dizer que leões são horríveis no quesito paciência.
Post Scriptum 1: Esse post faz parte de um desafio. E eu curto desafios...
Post Scriptum 2: Esse texto não reflete necessariamente, em toda a sua extensão e magnitude, a opinião certeira do seu autor. Eu diria, sem nenhum sarcasmo, que ele tem traços de opinião, daqueles bem sutis.