quinta-feira, 13 de setembro de 2007

As duas coisas da vida

De novo, é tudo culpa da semiologia. Pra quem não sabe, semiologia é uma matéria, deveras conhecida na área biomédica, que tem por finalidade elucidar o entendimento de sinais e sintomas apresentados por um enfermo qualquer, bem como a forma mais adequada de abordá-lo. A gente realmente aprende, por exemplo, a ser um médico de futuro. Ou enfermeira, sei lá. Enfim, o que importa é que essa disciplina tem afetado minha vida de várias maneiras, indo desde o modo de falar ou olhar pra alguém até a maneira de se vestir. O mais impressionante de tudo são as coisas que aqui-aculá eu escuto. Coisas como a de hoje.

Dr. Francisco de Assis de Lima, vulgarmente conhecido como "Dr. Chiquinho" por motivos óbvios, é um dos professores mais famosos dessa disciplina. Deve ter começado a lecioná-la muito antes d'eu nascer, e ainda continua lá até hoje, imortalizando-se a cada dia que passa. Dr. Chiquinho é um daqueles velhinhos atarracados, com aparência sisuda e troculenta, que nos faz lembrar algum pertencente do alto escalão do Exército. Tem, como sinal patognomônico, o inteligente hábito de, de vez em quando, falar uma frase de efeito, daquelas que você nunca escutou em lugar nenhum. Hoje não foi diferente. Em meio a uma bonita explicação sobre adolescência, ele disse algo que fez aparecer instantaneamente aquele silêncio reflexivo típico: "Todo e qualquer adolescente normal de dezoito anos, com um plano de vida sólido e coerente, deve crescer para fazer duas, e apenas duas coisas na vida: trabalhar e amar. Trabalhar e amar". Agora é a hora que você reflete. Vá, eu espero...

Trabalhar. Conheço poucas atividades que, quando desempenhadas com prazer, sejam tão lúdicas quanto o trabalho. Namorar talvez seja uma delas. Viajar também. Mas é porque o trabalho tem aquele sentimento de "sentir-se útil", de fazer algo em prol de alguma coisa que, por vezes, você num faz a mínima idéia do que seja. Há um tempinho atrás, enquanto voltava de uma farra, conheci um taxista que quase me fez desistir da medicina pra dirigir táxi também. O jeito como ele falava daquela vida que ele levava há uns vinte anos era de encher os olhos de lágrimas. Cheia de aventura, suspense e muito pano pra manga. Fico impressionado também quando, saindo pra aula, às 06:30 da manhã, vejo o jardineiro daqui do prédio todo sorridente, tratando as rosas como se fossem belíssimas mulheres. Nessas horas, eu me acho um bosta. Quem sou eu pra acordar de mau-humor daquele jeito? Eu realmente sou um bosta. Mas inspiro-me em todos os jardineiros, taxistas, cobradores e tantos outros que, em meio a tanta dificuldade, trabalham com aquele sorriso orelha-a-orelha.

Amar. Eu podia terminar o post aqui. Duvido que exista, na língua dos homens, palavra mais autoexplicativa que essa. Mas não, não posso deixar de dar meu parecer sobre isso. Porque esse amor, segundo o glorioso Dr. Chiquinho, não é só aquele amor que a gente sente por alguém, aquele que usa drogas. Não, não. Você tem que amar tudo, principalmente aquilo que é seu. Ame seu trabalho, ame sua casa, sua mulher, seus filhos, seu cachorro, seu salário. Ame seu carro, sua cama, seu chefe, ame seu corpo. Ame cada um dos seus problemas. Serão eles que te farão crescer. Ame as estrelas, porque lá em cima tem uma que é só sua. Ame as primeiras horas do dia. Nunca se sabe quando um jardineiro te acordará com um sorriso que vai mudar seu dia. Ame também as últimas, pois são nelas que os taxistas mais trabalham, esperando alguém que escute todas as suas histórias fantásticas. Ame seus amigos, ame a natureza, ame a sua profissão. Ame os passarinhos. Todos eles. E, em meio a tanto amor, não esqueça de amar aquele sem o qual todo esse amor perderia a razão de ser: você.

Nessas aulas que eu vejo que ser médico vai valer a pena. Dá um trabalho do caralho, mas valerá a pena. Pena que as aulas de semiologia sempre terminam cedo demais. Sempre.


[ "You take the blue pill and the story ends. You wake in your bed and believe whatever you want to believe. You take the red pill and you stay in Wonderland, and I show you how deep the rabbit-hole goes... Remember: all I am offering is the truth, nothing more." ]

Quando a gente acredita, a gente pode fazer chover...