terça-feira, 27 de outubro de 2009

A Monalisa

Sêu Fulano-de-tal era uma morador de rua. Desde de pequenininho, na verdade. Não se lembra ao certo de ter tido mãe, pai ou algo do gênero. Nunca foi de ter muitas companhias, mas não por vontade própria. Simplesmente não tinha com quem compartilhar o muito tempo livre que lhe sobrava no dia-a-dia. Dormia há muito sobre um tênue pedaço de papelão em frente a um ateliê de pintura muito badalado. Seu proprietário era um senhor com uma certa idade, que passava o dia a compor quadros maravilhosos a pedido dos seu clientes. Sêu Fulano olhava tudo pela enorme janela de vidro que havia em frente ao estabelecimento.

Certo dia, Sêu Fulano se deu conta que o pintor, antes de fechar seu negócio, colocou pra fora da loja uma caixa. Teve curiosidade de xeretar a caixa e, para sua surpresa, descobriu pincéis, aquarelas, restos de tinta não usados e uma infinidade de coisas que o pintor com certeza usava na sua labuta diária. Tomando-os por lixo, pegou-os para si. E passou a observar o pintor mais avidamente daí em diante, na esperança de poder criar pinturas tão belas quanto as dele. Dia após dia ele "treinava" no muro de um beco nas proximidades. Sem muito contentamento com o seu desempenho, Sêu Fulano estava sempre começando do zero de novo, e de novo, e de novo. Não desistiria até ter sua própria "Monalisa". Passava as horas do dia observando e as horas da madrugada pintando. Dormia pouco e isso sequer o afetava. A pintura o apaixonava cada vez mais a cada dia.

Com o tempo, ele foi pegando o jeito, aprendendo alguns efeitos e técnicas por si só. Começou a se arriscar a pintar coisas belas em muros um tanto quanto feios. Quando a noite caía e as pessoas repousavam em sua camas quentinhas, ele saía a procura da tela que lhe serviria por aquela noite, mesmo correndo o risco de ser tomado de assalto por algum bandido ou policial mal-intencionado. Com o amanhecer do dia, as pessoas passaram a admirar pinturas "que apareciam do nada", que davam um ar de natureza a um ambiente que só conhecia correria e poluição. Mas Sêu Fulano permanecia no anonimato.

Certo dia, o pintor esqueceu a chave de sua casa dentro da loja e teve que voltar para buscá-la. Lá chegando, deparou-se com um homem que pintava o muro ao lado de sua loja em plena escuridão. Intrigado com aquilo, com a qualidade da pintura, o pintor desceu do carro e aproximou-se do homem.

- O que faz aqui a essa hora, amigo? Não acha que é meio tarde para pintar?

- Eu moro aqui, senhor. E gosto de pintar a essa hora... é mais calmo e não há tanta gente olhando.

Apesar de morar ali há muito, era a primeira vez que o pintor via Sêu Fulano. Tudo aquilo o deixou curioso - a pintura, o papelão, as tintas. Durante a madrugada eles conversaram sobre várias coisas. O pintor descobiu de onde viera o material de pintura, bem como a inspiração de Sêu Fulano. Achou aquilo tudo muito interessante, mais ainda quando Sêu Fulano fez uma revelação:

- Eu tenho muita vontade de pintar uma tela sobre uma praia. Adoraria ter meu próprio horizonte, minha própria areia branca, ondas, sol a pino...

- E por que não o faz? Não te falta mais nada.

- Eu nunca estive numa praia, senhor. Não sei ao certo como é.

Na manhã seguinte, após concluir a pintura que havia começado - que era sobre um pássaro que fizera um ninho num poste na mesma rua - o pintor levou Sêu Fulano à praia mais famosa da cidade, antes mesmo do sol despontar no longínqüo horizonte. Não havia ninguém à exceção dos dois. Durante os minutos que o nascer-do-sol procedeu, o tempo do Sêu Fulano parou. Não piscou com medo de corromper a imagem que se depositava na sua mente e no seu coração. Nunca havia visto algo tão bonito. Na verdade, nem sabia se "bonito" era suficiente para descrever aquilo tudo. Pediu permissão ao pintor para ficar ali mais um pouco quanto o artista precisou ir embora. Contemplou o máximo que pôde de tudo. E voltou no fim da tarde contando cada passo.

Na manhã seguinte, o pintor surpreendeu-se ao ver que o muro exatamente em frente à sua loja fora decorado. Era algo belíssimo, questionando-se se sua capacidade e habilidade poderiam produzir aquilo. Procurou Sêu Fulano mas não o encontrou. No lugar onde ele dormia havia apenas um pequeno pedaço de papelão com algo escrito em letra sofrida e disforme, mas ainda legível.

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Em todos esses anos que eu morei aqui, sempre admirei o que o senhor fazia com as mãos. Passava meus dias imaginando se um dia eu seria como o senhor. Encontrei nas tintas um motivo a mais para seguir em frente. E sempre tive vontade de pedir ao senhor para me mostrar como era o horizonte, mesmo que fosse em um de seus quadros.

Agora eu sei como é. Agora eu sei.

Obrigado

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Na mesma hora um cliente vinha chegando à loja.

- Nem reparei que o senhor tinha decorado o muro em frente, Osvaldo. Ficou muito bonito mesmo. Quero um igual para mim... Pode ser?

Rindo, Sêu Osvaldo, o pintor, respondeu:

- Não, meu caro, não pode. Eu nunca conseguiria. Nunca...





domingo, 25 de outubro de 2009

Fotografia

As estrelas são coisas que estão muito, muito longe de nós. Indescritivelmente vastas, de tão longe, chegam aos nossos olhos como meros pontinhos no céu, como se alguém, num momento de descuido, deixasse respingar tinta branca sobre um carpete escuro. Elas estão tão longe que, antes mesmo que possa impressionar nossa retina, a luz por elas emitida tem que atravessar o próprio infinito.

Pode parecer estranho, mas eu sempre penso nisso quando olho para o céu. No momento em que ponho os olhos numa estrela vejo como ela era há muitos anos atrás, anos esses que sua luz levou para chegar até mim. Logo, toda estrela está sempre nos mostrando o seu passado, como ela era. E o que mais impressiona é que, se você parar pra pensar friamente, você está olhando diretamente para o passado. No presente, mas olhando pro passado.


Hoje eu cheguei a conclusão de que é exatamente isso que as fotografias fazem.


sábado, 17 de outubro de 2009

Quem bom seria...

se todo caminho fosse assim.


(taca o dedo pra ampliar)


quarta-feira, 14 de outubro de 2009

?

De tanto lhe dizerem o que fazer, agora era ele que não sabia o que fazer da própria vida.
Questionava-se a todo momento até onde vai a culpa por não se saber o que fazer da vida.
Era normal? É assim com todo mundo? E o que as pessoas vão pensar? E se algo der errado?









Se você souber a resposta, por favor, avise. Ele vai ficar muito grato.


segunda-feira, 5 de outubro de 2009

O colibri

Acordou. Preparar-se-ia para mais um ritual que se seguia toda manhã: levantar, tomar banho, tomar café, colocar a roupa da escola, arrumar o material, entrar no carro, ir para a escola. Era sempre assim desde que começara a cursar a sexta série. Não que gostasse muito, pois acordar cedo era realmente um saco. Mas o que mais monotonizava o processo era o fato de sempre ser uma coisa maquinada, sem nenhuma novidade ou surpresa.

Naquele dia, porém, ao se dirigir para o carro, notou algo estranho. Numa das plantas de médio porte do jardim havia algo parecido com um ninho. Ao chegar mais próximo, ele comprovou que o era. Alguma ave, a princípio, teria feito daquela planta sua morada. Tamanha foi a sua surpresa quando, segundos depois, descobriu que aquele era o ninho de um beija-flor. Nunca havia visto um tão bonito e reluzente como aquele. Tentou pegá-lo, mas ele frustrou-lhe a tentativa. Ao chamado do seu pai, entrou no carro e foi para a escola. Passou a a manhã pensando se o pequeno colibri estaria lá quando retornasse.

Para sua surpresa ao retornar o ninho não só estava lá, como também estava a ave, pousada em toda a sua majestade. Sem pensar muito, o garoto tentou apanhá-lo mais uma vez, o que fez com que o pássaro voasse para longe. Entrou em casa para o almoço, planejando um modo mais furtivo de apanhar o fujão. Após a refeição, retornou ao jardim e ficou contemplando o pássaro em todo o seu esplendor. Não conseguia pensar em nada que pudesse torna aquele beija-flor captivo. Vez por outra, ele voava pelas flores próximas, pairando no ar como se houvesse um fio invisível sustentando-o do céu. Ao fim da tarde, o colibri ainda estava livre e o garoto, inquieto.

Durante várias semanas, esse evento se repetiu. Entretanto, apesar de aparentemente monótono, o tempo dispendido em pensar numa forma de capturar o animal instigara o garoto a retornar dia após dia. Tentou algumas maneiras pouco efetivas, que quase sempre resultavam em fuga da ave e resignação do menino. Teve até uma vez na qual o pássaro demorou quase um dia inteiro para retornar. Mas o garoto parecia gostar daquilo. Passava as tardes sempre lá, na esperança de que o pássaro fosse seu.

Depois de muito tempo sem sucesso, numa manhã morosa, o garoto já sem grande interesse percebeu que o ninho do beija-flor não estava mais lá. Na verdade, uma torrente chuvosa ocorrida na madrugada daquele dia havia destruído a frágil morada. De imediato, o menino começou a procurar o pássaro pelas redondezas. E viu. Estava parado, em plena desolação, debaixo de uma frondosa folha de uma árvore de maior porte na proximidade. Aproximou-se lentamente a fim de não espantar o desabrigado. E então aconteceu: o beija-flor levantou vôo e veio ter no ombro do menino. Despojada e cuidadosamente, o garoto o pegou entre os dedos, tendo cuidado para não machucá-lo. O pequeno beija-flor tinha um ar de desamparo e isso logo comoveu o menino. Naquela mesma tarde, o garoto levou a ave para uma praça próxima e alocou-o no oco de um imenso baobá. Ali o pássaro sentiu-se em casa. Todo dia, após voltar da aula, o menino ia à praça ver o beija-flor. E o beija-flor estava sempre voando, feliz. O menino jurava que, por vezes, se ele pudesse falar, agradeceria-o por tudo. Para o menino, o fato de ter conquistado aquela coisinha pequena e frágil já tinha valido tudo.

Um dia o beija-flor foi embora, é verdade. Mas mesmo assim o garoto continuava a ir à praça todo santo dia. "Ele não pode ter ido muito longe", ele dizia. "Colibris nunca vão embora... Colibris nunca abandonam sua violetas...". E ele estava certo. Por Deus, como estava certo.





Post Scriptum: Nunca abandonam suas violetas.


quinta-feira, 1 de outubro de 2009

Mais um dia

Terça-feira última, madrugada do dia 29 de Setembro de 2009.

A.M.M.S, feminino, 29 anos, natural e procedente do interior do estado de Pernambuco, morando em Natal desde os sete anos de idade. A.M.M.S. - a qual convencionaremos chamar apenas de "A" - chega ao pronto-socorro do Hospital João Machado (HJM) trazida por um daqueles cidadãos de bem que possuem o coração maior que a caixa torácica. A foi encontrada deitada na calçada de uma igreja bastante conhecida na cidade, igreja essa que meus amigos apelidaram de "Casa da Moeda" e que, coincidentemente, pertence a um rapaz de bem chamado Edir Macêdo (apelido mais coerente, impossível, né ?!). O senhor que ajudou A alegou que ela apresentava um comportamento estranho, como se estivesse passando mal, e perguntou se ela não queria ser levada ao hospital. No caminho, entretanto, algumas revelações de A fizeram o senhor se dirigir para o HJM. Lá chegando,
A foi prontamente atendida pela equipe de plantão, e é aqui que começa a sua (breve) história.

A, conforme já dito, nasceu em Pernambuco, onde passou o início da sua infância. Aos 3 meses de idade, seus pais a abandonaram à própria sorte e - não me pergunte como -, aos sete anos, ela mudou-se para Natal. Desde lá, A vive perambulando pelas ruas da cidade, sobrevivendo com aquilo que as pessoas dão, quase sempre dinheiro em pequena monta. Foi na rua que ela conheceu e aprendeu sobre tudo aquilo que sabia até o momento. Não tinha parentes, sequer amigos. Estava no que aparentava ser o sexto mês de uma segunda gravidez completamente negligenciada. Perceba que eu disse segunda. A primeira havia findado há pouco mais de dois meses e o rebento também não recebera os cuidados adequados. Em ambas, o pai da criança era desconhecido. A chegou ao hospital com sintomatologia típica de um adicto em síndrome de abstinência. Ao ser indagada, alegou ser usuária de drogas desde o final da infância. Ultimamente, sua droga de predileção (não sei se se pode chamar isso de "predileção") era o crack, o qual não era consumido havia dois dias, justificando o quadro que ela apresentava. Questionada sobre parceiros e atividade sexual, A disse que possuíam vários parceiros - a ponto de não saber dizer quantos - e que praticava sexo "com quem quer que fosse" para conseguir o dinheiro da droga. Consumava-o no meio da rua mesmo, sem choro nem vela. Indagada sobre o pré-natal das crianças, relatou que nunca fez. "A criança simplesmente nasce, dotô". Nesse ponto, devemos agradecer à natureza, que sempre soube o que fez mesmo.

Passado esse momento, medicação adequada foi prescrita para A. Pelo menos nas próximas doze horas ela se sentiria melhor. Depois da consulta, ela ficou sentada num banquinho, admirando o jardim e se empanturrando com metade do lanche de alguém - metade de um sanduíche natural e metade de um achocolatado. "Essa é a melhor refeição que eu faço na vida, dotô". Pela manhã, A permanecia sobre o mesmo banquinho, acordada, quieta, talvez ponderando se aquele seria "mais um dia".

Engraçado que a enfermeira que sempre reclamava que faltava água no bebedouro, hoje, não reclama mais. De repente, a vida dela pareceu uma maravilha.








Post Scriptum: Baseado em fatos reais. Talvez reais demais, eu diria.


[ "You take the blue pill and the story ends. You wake in your bed and believe whatever you want to believe. You take the red pill and you stay in Wonderland, and I show you how deep the rabbit-hole goes... Remember: all I am offering is the truth, nothing more." ]

Quando a gente acredita, a gente pode fazer chover...