quarta-feira, 5 de novembro de 2008

Grave greve

Historicamente, principalmente após a regulamentação do trabalho e dos direitos trabalhistas, a classe operária passou a contar com várias ferramentas úteis na defesa de seus ideais. A organização em sindicatos, por exemplo - ao contrário dos conselhos, que têm a função apenas de fiscalizar e regulamentar o exercício correto e pleno das profissões -, é uma forma de proteger a classe trabalhadora e evitar que determinadas medidas venham a interferir lesivamente no processo trabalhista. Ainda, o trabalhador em si dispõe de outras formas não-representativas de reivindicação e uma delas anda muito em alta ultimamente: a greve. Esta consiste basicamente na paralisação coletiva e voluntária de qualquer serviço prestado, realizada pelos executores desse serviço que visam a obtenção de algum benefício como aumento salarial, melhores condições de trabalho e vigência de direitos trabalhistas. É um ato geralmente acompanhado por manifestações públicas de protesto e, às vezes, represálias.

Contudo, a greve não consiste um ato proibido. Está regulamentada e legitimada pela Constituição, dando a todo e qualquer trabalhador o direito de se usar dela para defender seus interesses. Isso acontece quase sempre quando não ocorre um consenso sobre algum ponto da relação existente entre empregador e empregado. O empregado - trabalhador -, sentindo-se lesado, faz uso da greve como forma de persuadir o empregador a acatar suas exigências. É basicamente assim em qualquer tipo de manifestação.

Então a greve é isso: é brigar pelo que se tem de direito. E todo mundo tem direito. Professores, metalúrgicos, policiais, motoristas de ônibus, operadores de telemarketing, militares, entregadores de pizza, recepcionistas, ASG's, bombeiros, atores, porteiros, salva-vidas, cozinheiros, cabelereiros, alfaiates e um sem-fim de outras ocupações. Até namorados entram em greve hoje em dia. E é compreensível, por exemplo, que professores parem de dar aula para brigar por uma educação mais digna, sei lá. Motoristas de ônibus podem parar sem um prejuízo muito grande ou duradouro para a sociedade só porque o salário no fim do mês não tá bacana. As caminhadas decorrentes disso, inclusive, são bem vistas pelos cardiologistas. Metalúrgicos podem deixar de fabricar mais um carro do ano enquanto as condições de trabalho não forem satisfatórias. O namorado pode sim fazer greve de beijo, cinema e motel por motivo de abandono e esquecimento. Ninguém vai perder a vida se tiver que ficar sem uma aula, andar um pouco a pé ou demorar mais pra ganhar um convite para sair. Nesse ponto, as greves não promovem grandes maleficências.

Mas tem uma coisa que não é tolerável. Todo mundo tá sabendo que a saúde anda parada ultimamente. Motivo: greve dos servidores. Certo, certo. Greve. Nada contra a greve, a luta pelo salário mais digno e pelas condições de trabalho decentes. Não é nenhum mistério pra ninguém que o médico ganha uma mixaria e que é obrigado a fazer neurocirurgia na mesa do consultório com faca de cozinha enquanto falta dipirona no armário. Mas uma coisa que não pode haver de maneira alguma é negligenciar o atendimento de um enfermo que precisa de cuidados por causa de um capricho que envolve causas tipicamente burocráticas. Existem maneiras de se reivindicar o que é pretendido, inclusive de aderir a uma potencial greve, sem lesar os ditâmes éticos dessa profissão.

E argumentar em favor disso é fácil. Tá escrito no Código de Ética Médica (Resolução CFM
1.246/1988), no capítulo I, artigo 3º: a fim de que possa exercer a medicina com honra e dignitude, o médico deve ter boas condições de trabalho e ser remunerado de forma justa. Logo, é dever do Estado prover o médico ou qualquer outro profissional de saúde com condições aceitáveis para que o serviço seja prestado de modo satisfatório. Caso isso não ocorra, reserva-se ao profissional o direito de brigar em prol disso, quer seja com greves, quer seja com a medida que for. Aí você pensa: "Então não tem nada de errado em o médico deixar de prestar o serviço por causa de suas reivindicações?", certo? Errado! O mesmo Código de Ética diz, no capítulo II, artigo 29: é vedado ao médico praticar qualquer ato que, por imperícia, imprudência ou negligência, possa repercutir em dano ao paciente. Logo, negligenciar o paciente sob qualquer forma que seja é passível de punição por crime ético, sem falar nas repercussões judiciais que isso pode implicar. Mas aí você pensa de novo: "Se é assim, como resolver o problema da greve sem deixar que a sociedade seja penalizada por isso?". Pois é, como?

Esse é o ponto para o qual converge a maioria dos conflitos ideológicos envolvendo esse tema. Há quem diga que a paralisação não pode ser total. Há outros que apregoam a diminuição da carga horária efetiva durante o período de greve. Mas a questão é que ninguém vai gostar de ter um infarto sabendo que os servidores da saúde estão parados. E de certa forma isso é algo que vai contra o senso-comum daquelas pessoas com excesso de bondade no coração. Tem médico também que não tem coragem de parar, assim como tem aqueles que nem pensam duas vezes antes de fazê-lo. É um tema que certamente divide até os mais entendidos no assunto. Mas uma coisa é certa: ninguém, médico ou não, ia gostar de saber que um filho ou mãe morreu porque o médico do serviço não apareceu pra trabalhar por conta da greve. Pense nisso antes de sair por aí dizendo que "se tem mesmo que brigar pelos direitos haja o que houver". O "houver", um dia, pode ser com você, amigo.








Post Scriptum: Sem nenhum forma de preconceito ou austentação, falei mais incisivamente da medicina por ser uma área com a qual tenho íntimo contato. Só.


[ "You take the blue pill and the story ends. You wake in your bed and believe whatever you want to believe. You take the red pill and you stay in Wonderland, and I show you how deep the rabbit-hole goes... Remember: all I am offering is the truth, nothing more." ]

Quando a gente acredita, a gente pode fazer chover...