quinta-feira, 15 de maio de 2008

Dia cinza

Olhou para o relógio. Doze horas e cinco minutos. Quase que imediatamente a sineta que anunciava o fim da aula tintilou, aquele barulho irritante mas, ao mesmo tempo, aprazível. Aquele último horário de biologia não tinha sido muito fisiológico. Arrumou o material na mochila e levantou-se para ir embora. Passando pela porta, apanhou algumas bolas de papel que estavam jogadas pelo chão e colocou-as no cesto de lixo, aproveitando para cuspir o chiclete já bastante curtido para uma aula só.

Saindo da sala, esbarrou numa garota visivelmente apressada, fazendo com que os cadernos e as folhas, carregados contra o peito da moça, fossem ao chão. Baixou-se desculposamente e ajuntou as folhas que estavam espalhadas, enquanto a menina fechava os cadernos. "Obrigada", ela disse. Ele apenas sorriu e desculpou-se com a cabeça. E continuou. Àquela hora, o mundo parecia apressado demais. Pessoas correndo pelos corredores, e gritando, e gesticulando. Agora, já na entrada da escola, uma terrível poluição sonora tomava conta do ambiente. Um nada aprazível duelo de buzinas, resultante da busca frenética dos pais pelos seus filhos naquilo que o noticiário outro dia chamou de
hora do rush. Quisera ter alguém para pegá-lo na escola. E assim desceu toda aquela reluzente escadaria quando, no patamar mais baixo, uma mãe perguntava por alguém que ele certamente conhecia. Era seu colega de sala. Parou um instante e, do alto dos seus um metro e noventa e um centímetros, como que num posto salva-vidas, achou o filho daquela mãe. Apontou a sua posição e obteve outro "obrigado". Sorriu apenas.

Continuou a caminhar pela calçada da alameda. O sol do meio-dia parecia estar dando um trégüa. Não estava quente como deveria. Pra falar a verdade, até ventava. Alguns passarinhos cantarolavam despretensiosamente nos galhos das árvores. No meio do caminho, entretanto, uma velhinha tentava atravessar a rua, fora da faixa destinada para tal. Gentilmente, ele conduziu a velhinha ao outro lado da rua, ensinando como e por onde fazê-lo na próxima vez. A senhora, com toda aquela simpatia cabível às vovós, olhando por cima dos óculos-de-crochê, sorriu profusamente e agradeceu o passeio. De imediato, logo mais a frente, uma mulher de meia-idade tentava heroicamente colocar uma caixa aparentemente pesada demais na mala do seu carro. Hesitou por um instante, achando que a mulher alcançaria seu objetivo. Mas, convencido que a tarefa era difícil demais, ofereceu ajuda que foi prontamente aceita. A caixa era realmente pesada, mas não foi lá grande coisa. A mulher quis retribuir com dinheiro, mas parece que sua satisfação foi mais que suficiente.

Olhou para o relógio novamente e já passava das doze e quarenta. Tinha que chegar ao seu destino antes das treze horas, de preferência. Apressou o passo, virando a esquina. Já estava perto, bem perto. Talvez mais uns quinhentos ou seiscentos metros. Foi quando, então, um homem lamentava o pneu do carro que acabara de furar. Um buraco, no meio do caminho. Pela mala aberta, notou que o carro não possuía estepe. Titubeou, temendo atrasar-se. E não parou. Do celular, porém, ligou para um serviço de reboque. Explicou a situação e deu todas as coordenadas, esperando que o guincho chegasse a tempo. Caminhou por volta de uns dez minutos, pesaroso por ter podido ajudar e não tê-lo feito. Virou-se no intuito de voltar e viu o caminhão do guincho já colocando o carro na caçamba.
Ufa!

Finalmente, após quase cinqüenta minutos de caminhada, chegara ao seu destino. Entrou recepção adentro, sendo atendido por uma bela ruiva de sorriso radiante:

- Bom dia! Em quê posso ajudá-lo? - perguntou a moça.
- Bom dia! - respondeu ele - Eu gostaria de visitar uma pessoa. Minha mãe. O quarto dela é o de número U-302.
- Hum... U, você disse? Ela está na UTI?
- Sim! - falou - E esse é o único horário de visitação no qual posso vê-la.

Com um ar de compaixão, a recepcionista disse:

- Pode ir. O médico que a acompanha está lá nesse momento.
- Obrigado!

Caminhando pelo extenso corredor do hospital, entrou pela porta com os dizeres "Unidade de Terapia Intensiva". Outro corredor abriu-se na sua frente. A medida que avançava notou que o silêncio tornou-se mais severo. Algumas enfermeiras andavam pelo corredor, entrando de porta em porta rapidamente. Procurou andar margeando o caminho, com medo que sua presença pudesse atrapalhar o trânsito de alguém. Continuou andando até chegar ao quarto no qual a plaquinha na porta denunciava: U-302. Bateu suavemente à porta, que encontrava-se entreaberta. Adentrou e
, percebendo que sua mãe estava desacordada, sentou na cadeira mais próxima, aguardando enquanto o médico e uma enfermeira faziam uma checagem aparentemente de rotina. Por cinco minutos, imperou o silêncio. Ao final, a enfermeira saiu. O médico, que agora pendurava o estetoscópio no pescoço, sorriu levemente para ele e, contornando o leito, veio ter com ele. Sentou-se ao seu lado e, após uma breve pausa, irrompeu:

- Sua mãe não está bem, meu rapaz. O câncer agora sofreu metástase e acometeu o fígado e o pulmão - o médico agora mirava o chão - Desculpe por não ter boas notícias.

Ele silenciou.

- Estamos vendo a possibilidade de reestabelecer uma nova abordagem terapêutica, quem sabe uma quimioterapia mais agressiva... - disse o doutor.
- Tudo bem, doutor. Faça o que for de seu melhor julgamento.
- E você? O que vai fazer agora?
- Eu?... - e, então, houve uma pausa mais longa - Eu acho que vou começar a praticar boas ações...


[ "You take the blue pill and the story ends. You wake in your bed and believe whatever you want to believe. You take the red pill and you stay in Wonderland, and I show you how deep the rabbit-hole goes... Remember: all I am offering is the truth, nothing more." ]

Quando a gente acredita, a gente pode fazer chover...