O ano era 1992. Nicholas era um garoto franzino, de cabelo enrolado, feições quadradas e porte um pouco menos atlético do que aquele observado na maioria das crianças da sua idade e estatura. Eu, como sempre, já era maior que os demais, já falava alto, ria mais alto ainda e não tinha lá muitos amigos além dos imaginários. Começamos a ficar amigos meio que por causa de uma situação bem peculiar: Nicholas era o garotinho pequenininho e indefeso, com o qual os grandalhões se metiam a besta e tentavam roubar o lanche. Eu, o amigo grandão, da voz firme, que sempre vinha tirá-lo do apuro. Claro que, até onde eu lembre, ninguém nunca tentou roubar o lanche dele, mas há relatos verídicos de brigas nas quais eu me meti só pra safar a pele dele. Lógico que, em função do tempo, isso não é algo que tenha se arraigado na minha memória.
A questão é que começava ali a surgir um clima de camaradagem que perduraria por muito tempo. Tudo foi passando, a gente foi crescendo e os interesses e afinidades foram se mostrando compatíveis. Partilhávamos do mesmo gosto por desenhos animados, por filmes, histórias em quadrinhos, conversas e um sem-fim de coisas. Mas tudo começou quando a gente descobriu que gostava mesmo era de passar o fim de semana jogando o bom e velho videogame. Foram várias noites não-dormidas querendo zerar aquele RPG que, à época, sem qualquer conhecimento de inglês ou raciocínio lógico mais apurado, fazia-nos perder noites e noites mesmo. Divagávamos sobre todas as possibilidades e, juntos, aprendemos a contornar todos os problemas.
Foi então que chegou o ano de 1998. Era a sétima série e estávamos em meados do quarto bimestre - sim, eu ainda sou do tempos dos "bimestres". Na época, o videogame da moda era o Nintendo 64, e a Nicholas fora prometido um novinho em folha caso ele não ficasse em recuperação. Infelizmente - ou felizmente, não sei - Nicholas não conseguiu cumprir a sua parte do acordo, o que resultou em um natal sem Nintendo 64 e sem jogos e noites alucinadas em 1999. Com tamanha frustração, num raro momento de desabafo (creio que o único em todos esses anos), ele virou pra mim e disse: "A partir de hoje eu vou estudar pra caralho. Vou fazer faculdade de computação, ficar fuderoso e ir trabalhar na Nintendo do Japão". Logicamente que eu, já acostumado com toda aquela lamúria divagativa, nada dei por aquela afirmação. Entrou em meu ouvido do mesmo modo como entravam as explicações do professor de história: vagas e sem sentido. E assim foi.
O ano de 2002 chegara e chegara também o pré-vestibular. Até onde eu lembro, Nicholas nunca conseguiu passar de ano direto depois da quinta série. Logo, para muitos, ele chegava ao ano da decisão bastante desacreditado. Eu sequer perdi tempo pensando nisso. A gente tinha outros planos e outros jogos pra dar conta. A questão é que, ao fim do ano, com o resultado do vestibular vinha também a mais inusitada aprovação de todas: a dele. Passou logo no primeiro semestre, como se já mostrasse que não havia tempo a perder. Ainda no primeiro período da faculdade, Nicholas "inventa" de fazer curso de japonês no Cefet-RN. Lógico que, de novo, isso foi encarado como mais uma de suas várias enlouquecidas. Nem usuário de pó parecia viajar tanto. Mas ele, impávido, levou a decisão pra frente, sem sequer tomar conhecimento de qualquer reprovação.
E a faculdade passou. Nicholas se formou dentro do prazo mínimo, com algumas reprovações, é verdade, mas, enfim, tinha o canudinho na mão. O japonês ia de vento em popa e, agora, ele tinha um emprego, bastante rentável, diga-se de passagem. Já no primeiro ano surgiu uma oportunidade de bolsa para estudar, quem diria, no Japão. Era composta de uma prova em japonês e uma entrevista. Por critérios próprios da prova, Nicholas, embora tenha tirado uma boa nota na prova escrita, não foi escolhido para a única vaga que a bolsa oferecia. Frustração e mais um desabafo: "Doido (ele fala muito essa palavra, 'doido'), vou me inspirar agora nesse homem. Vou estudar até passar!". O homem ao qual ele se referia era eu, lembrando a peleja dos vestibulares. Preciso nem dizer o orgulho que foi escutar isso de uma pessoa que eu conhecia desde pequenininho, né?! E ele continuou naquele esquema trabalho-japonês-videogame no ano seguinte, submetendo-se às provas de novo e levando porrada em todas.
Ano passado, em 2009, depois de não conseguir algumas vezes, Nicholas parecia conformado. Aprendeu, inclusive, a tocar piano sozinho, em mais uma de suas empreitadas autodidatísticas. Levou apenas dois meses e já era quase um Beethoven. O piano foi uma boa porque preenchia seu tempo "ocioso" de maneira sublime. Não era raro eu ligar às duas da manhã e ele estar tocando alguma música que só ele gostava. E assim foi até que, subitamente, chega aos meus ouvidos que Nicholas ia embora. "Ia embora? Como pode?", indaguei. Quando fui saber da verdade, ele não só havia conseguido como já estava correndo atrás de todas as tranqueiras pra viagem, porque tinha menos de dois meses pra resolver tudo. E foi rápido mesmo. Em um dia ele tocava piano. No outro ele tinha que arranjar num-sei-quantos-reais pra poder comprar a passagem. Nesse exato momento, inevitavelmente veio á minha cabeça aquele momento lá na sétima série. E fui repassando cada dia de lá até aqui. E depois, do começo de tudo, lá em 1992, até aqui. Filme grande na cabeça. E agora ele ia embora.
Estamos em 2010 e vai fazer um mês que ele tá lá, comendo aquelas porcarias sem gosto que ele adora. Sempre manda notícia falando como estão as coisas no lado nipônico. Já começou a estudar robótica numa cidadezinha chamada Kanazawa, no Kanazawa Institute of Technology and Science. Vai ficar lá por dois anos fazendo exatamente aquilo que ele disse que faria quando tinha apenas treze, há doze anos atrás. E se eu bem conheço, vai voltar cheio de histórias. Cheinho.
Tá aqui a foto que não me deixa mentir. Repare que os anos passaram, mas o jeito franzino e quadrado continua o mesmo. Exatamente o mesmo.
Certeza que agora, três da madrugada aqui e três da tarde lá, ele deve estar sentindo falta do piano velho de guerra. Certeza.
A questão é que começava ali a surgir um clima de camaradagem que perduraria por muito tempo. Tudo foi passando, a gente foi crescendo e os interesses e afinidades foram se mostrando compatíveis. Partilhávamos do mesmo gosto por desenhos animados, por filmes, histórias em quadrinhos, conversas e um sem-fim de coisas. Mas tudo começou quando a gente descobriu que gostava mesmo era de passar o fim de semana jogando o bom e velho videogame. Foram várias noites não-dormidas querendo zerar aquele RPG que, à época, sem qualquer conhecimento de inglês ou raciocínio lógico mais apurado, fazia-nos perder noites e noites mesmo. Divagávamos sobre todas as possibilidades e, juntos, aprendemos a contornar todos os problemas.
Foi então que chegou o ano de 1998. Era a sétima série e estávamos em meados do quarto bimestre - sim, eu ainda sou do tempos dos "bimestres". Na época, o videogame da moda era o Nintendo 64, e a Nicholas fora prometido um novinho em folha caso ele não ficasse em recuperação. Infelizmente - ou felizmente, não sei - Nicholas não conseguiu cumprir a sua parte do acordo, o que resultou em um natal sem Nintendo 64 e sem jogos e noites alucinadas em 1999. Com tamanha frustração, num raro momento de desabafo (creio que o único em todos esses anos), ele virou pra mim e disse: "A partir de hoje eu vou estudar pra caralho. Vou fazer faculdade de computação, ficar fuderoso e ir trabalhar na Nintendo do Japão". Logicamente que eu, já acostumado com toda aquela lamúria divagativa, nada dei por aquela afirmação. Entrou em meu ouvido do mesmo modo como entravam as explicações do professor de história: vagas e sem sentido. E assim foi.
O ano de 2002 chegara e chegara também o pré-vestibular. Até onde eu lembro, Nicholas nunca conseguiu passar de ano direto depois da quinta série. Logo, para muitos, ele chegava ao ano da decisão bastante desacreditado. Eu sequer perdi tempo pensando nisso. A gente tinha outros planos e outros jogos pra dar conta. A questão é que, ao fim do ano, com o resultado do vestibular vinha também a mais inusitada aprovação de todas: a dele. Passou logo no primeiro semestre, como se já mostrasse que não havia tempo a perder. Ainda no primeiro período da faculdade, Nicholas "inventa" de fazer curso de japonês no Cefet-RN. Lógico que, de novo, isso foi encarado como mais uma de suas várias enlouquecidas. Nem usuário de pó parecia viajar tanto. Mas ele, impávido, levou a decisão pra frente, sem sequer tomar conhecimento de qualquer reprovação.
E a faculdade passou. Nicholas se formou dentro do prazo mínimo, com algumas reprovações, é verdade, mas, enfim, tinha o canudinho na mão. O japonês ia de vento em popa e, agora, ele tinha um emprego, bastante rentável, diga-se de passagem. Já no primeiro ano surgiu uma oportunidade de bolsa para estudar, quem diria, no Japão. Era composta de uma prova em japonês e uma entrevista. Por critérios próprios da prova, Nicholas, embora tenha tirado uma boa nota na prova escrita, não foi escolhido para a única vaga que a bolsa oferecia. Frustração e mais um desabafo: "Doido (ele fala muito essa palavra, 'doido'), vou me inspirar agora nesse homem. Vou estudar até passar!". O homem ao qual ele se referia era eu, lembrando a peleja dos vestibulares. Preciso nem dizer o orgulho que foi escutar isso de uma pessoa que eu conhecia desde pequenininho, né?! E ele continuou naquele esquema trabalho-japonês-videogame no ano seguinte, submetendo-se às provas de novo e levando porrada em todas.
Ano passado, em 2009, depois de não conseguir algumas vezes, Nicholas parecia conformado. Aprendeu, inclusive, a tocar piano sozinho, em mais uma de suas empreitadas autodidatísticas. Levou apenas dois meses e já era quase um Beethoven. O piano foi uma boa porque preenchia seu tempo "ocioso" de maneira sublime. Não era raro eu ligar às duas da manhã e ele estar tocando alguma música que só ele gostava. E assim foi até que, subitamente, chega aos meus ouvidos que Nicholas ia embora. "Ia embora? Como pode?", indaguei. Quando fui saber da verdade, ele não só havia conseguido como já estava correndo atrás de todas as tranqueiras pra viagem, porque tinha menos de dois meses pra resolver tudo. E foi rápido mesmo. Em um dia ele tocava piano. No outro ele tinha que arranjar num-sei-quantos-reais pra poder comprar a passagem. Nesse exato momento, inevitavelmente veio á minha cabeça aquele momento lá na sétima série. E fui repassando cada dia de lá até aqui. E depois, do começo de tudo, lá em 1992, até aqui. Filme grande na cabeça. E agora ele ia embora.
Estamos em 2010 e vai fazer um mês que ele tá lá, comendo aquelas porcarias sem gosto que ele adora. Sempre manda notícia falando como estão as coisas no lado nipônico. Já começou a estudar robótica numa cidadezinha chamada Kanazawa, no Kanazawa Institute of Technology and Science. Vai ficar lá por dois anos fazendo exatamente aquilo que ele disse que faria quando tinha apenas treze, há doze anos atrás. E se eu bem conheço, vai voltar cheio de histórias. Cheinho.
Tá aqui a foto que não me deixa mentir. Repare que os anos passaram, mas o jeito franzino e quadrado continua o mesmo. Exatamente o mesmo.
Certeza que agora, três da madrugada aqui e três da tarde lá, ele deve estar sentindo falta do piano velho de guerra. Certeza.
Post Scriptum 1: Pessoa mais fuderosa que eu conheço. Disparadamente.
Post Scriptum 2: Quem tiver interesse, ele tem um blog sobre falando sobre suas aventuras nipônicas. É só clicar aqui.
Post Scriptum 3: Abayo, yasashii hito. Abayo.